Foi na semana passada.
Ajudei uma pessoa a subir os degraus do comboio. Um senhor na casa dos seus 55/60 anos, bem vestido e aprumado.
Vejo-o de amiúde e por norma aquela hora, à espera do comboio, pelo que presumo se dirija ao emprego em Lisboa.
Naquele dia, ou porque estava a pensar noutra coisa, ou porque se desorientou, ou porque apenas porque, não dava com a porta, por conseguinte iniciou um nervosismo ritmado com a sua bengala.
Processo normal para quem é cego e tem que se adaptar à força, ao mundo ainda egoísta dos ditos "normais" só porque são mais.
Foi tudo muito rápido, aliás como ditam as regras do despachar-que-o-comboio-tem-de-seguir-e-estamos-sempre-todos-com-muita-pressa.
Dei-lhe o braço. Subimos.
As pessoas, que inevitavelmente levaram um encontrão, olharam de viés para lançar um olhar mortífero de quem fora incomodado, contudo, quando perceberam tinha sido um cego, conformaram-se na sua riqueza de sentidos e apaziguaram o seu fel matinal em nada tecerem.
Neste turbilhão foi quando me apercebi que o senhor trazia um sapato de cada cor: um preto e um castanho.
Tive um choque. Um manancial de pena, de desilusão, de impotência, de fraqueza, de despropositada culpa - tudo brotou ao mesmo tempo.
Nada lhe disse. Achei que o iria incomodar mais, e claramente nada ele poderia fazer naquele momento. Deixei para os colegas, para as pessoas com quem tenha uma relação mais íntima e de confiança.
Já passou seguramente uma semana, mas ainda penso nisto. Nesta minha atitude.
Será que o deveria ter avisado, apesar de que todos naquele mínimo espaço, iriam ouvir e ele talvez ficasse magoado por ser exposto por uma estranha, apenas pelo seu desculpável inadequado gesto social (o trazer um sapato diferente em cada pé)?
É difícil.
Não é fácil lidar com as pessoas, ainda para mais com quem não conhecemos, com quem não sabemos como andam no mundo: se a bem ou revoltadas.
O respeito pelos outros, pelo seu espaço, pela sua intimidade, pela sua liberdade, é bonito dizer-se, mas a diferença está no tentar.
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