

Linha recta que divide um ângulo em duas partes iguais ou... moi même.
Até podia ser eu!
Não fossem as pernas tão compridas, a barriga sem gordurinha, o cabelo liso, os olhos castanhos e o peso pluma.
Ainda falta para as minhas (próximas) férias de mar, mas a angústia em acabar com a celulose - e não me refiro à pasta de papel, é um fantasma desgastante e deprimente.
Que se lixe, tenho bom coração, um biquini novo e uma alma cheia de amor para dar! (chega, não chega!? :)
Costuma-se dizer "Do susto ninguém nos livra", pela minha parte acrescento que nem do susto, nem das taquicárdias, nem dos cabelos brancos, nem da dilatação das pupilas em órbita, nem da ofuscada visão, nem da respiração em tornado, nem dos nervos e mais que seja.
Foi no Sábado passado.
Sou de baixa estatura, mas nesse dia consegui mirrar ao ponto de ficar pronta para um qualquer laboratório de nanotecnologia.
O tempo prestava-se a um belo passeio de bicicleta, de mota, de mergulhos no mar, enfim. O meu rapaz optou pela bicla, mas nem capacete, nem joelheiras, nem cotoveleiras, nem juízo, nem nada. Do outro lado da estrada vinha um jeep. Palavras para quê.
Culpa dos dois: um porque vinha depressa demais, à confiança por ser uma estrada de pouco movimento, onde raramente se vê viva alma; e outro pela incúria da observação das regras de quem circula, mesmo em estradas onde raramente se vê viva alma, principalmente quando de pavimento de gravilha se trata.
O choque foi brutal, a sorte foi muita.
Cabeça e corpo batidos no capô do carro, cuspido pela gravilha fora, bicicleta debaixo do carro que não sobrou nem para peças.
Directo para o Garcia da Horta (hospital de Almada), ficou sob observação... que tempos!!
Por meio de hematomas feios e escoriações várias que não se ficaram atrás na beleza, mais um calcanhar deitado abaixo ao ponto de levar 6 pontos para o compôr, restou os dedos da mão esquerda livres de maleita. Sim, até o rabo ficou com lesões.
Pormenores dos gritos ao ser cosido, dos pontapés do pânico de tanta seringa e agulhas e sangue e dores e ardores e batas azuis e brancas à sua volta, não vale a pena mencionar.
Todo escaqueirado foi como voltou para casa, mas vivo e na certeza de que o uso do capacete, joelheiras e cotoveleiras, bem como da atenção à estrada onde circula, passaram a ser, finalmente, prioritários - assim ele diz aos 8 anos.
Foi algo mais que um susto. A impotência perante o pensar duma possível perda do maior tesouro que possuimos e a percepção clara e óbvia (mais uma vez) de quão frágil é a vida.
De quão frágeis e impotentes nós somos. Reduzidos a frágeis e impotentes... em micro-segundos.
Algo muito mais que um susto.
Foi na semana passada.
Ajudei uma pessoa a subir os degraus do comboio. Um senhor na casa dos seus 55/60 anos, bem vestido e aprumado.
Vejo-o de amiúde e por norma aquela hora, à espera do comboio, pelo que presumo se dirija ao emprego em Lisboa.
Naquele dia, ou porque estava a pensar noutra coisa, ou porque se desorientou, ou porque apenas porque, não dava com a porta, por conseguinte iniciou um nervosismo ritmado com a sua bengala.
Processo normal para quem é cego e tem que se adaptar à força, ao mundo ainda egoísta dos ditos "normais" só porque são mais.
Foi tudo muito rápido, aliás como ditam as regras do despachar-que-o-comboio-tem-de-seguir-e-estamos-sempre-todos-com-muita-pressa.
Dei-lhe o braço. Subimos.
As pessoas, que inevitavelmente levaram um encontrão, olharam de viés para lançar um olhar mortífero de quem fora incomodado, contudo, quando perceberam tinha sido um cego, conformaram-se na sua riqueza de sentidos e apaziguaram o seu fel matinal em nada tecerem.
Neste turbilhão foi quando me apercebi que o senhor trazia um sapato de cada cor: um preto e um castanho.
Tive um choque. Um manancial de pena, de desilusão, de impotência, de fraqueza, de despropositada culpa - tudo brotou ao mesmo tempo.
Nada lhe disse. Achei que o iria incomodar mais, e claramente nada ele poderia fazer naquele momento. Deixei para os colegas, para as pessoas com quem tenha uma relação mais íntima e de confiança.
Já passou seguramente uma semana, mas ainda penso nisto. Nesta minha atitude.
Será que o deveria ter avisado, apesar de que todos naquele mínimo espaço, iriam ouvir e ele talvez ficasse magoado por ser exposto por uma estranha, apenas pelo seu desculpável inadequado gesto social (o trazer um sapato diferente em cada pé)?
É difícil.
Não é fácil lidar com as pessoas, ainda para mais com quem não conhecemos, com quem não sabemos como andam no mundo: se a bem ou revoltadas.
O respeito pelos outros, pelo seu espaço, pela sua intimidade, pela sua liberdade, é bonito dizer-se, mas a diferença está no tentar.